ESTAMIRA – beira do mundo

Foto | Barbara Copque

Um retrato, um documentário, mas também um depoimento, pessoal e artístico. Este é o mote de ESTAMIRA – BEIRA DO MUNDO, monólogo com Dani Barros e direção de Beatriz Sayad. Adaptação a quatro mãos para o teatro do premiado documentário de Marcos Prado sobre Estamira, uma mulher real que sobrevivia com o que encontrava em um lixão.

“Dizem que era louca. Talvez o fosse. Mas será que nós, os supostamente sãos, encaramos a vida com a mesma garra e dignidade? Será que somos capazes de refletir sobre a vida com a mesma lucidez? Particularmente, acredito que não. (…) Mesclando ficção e realidade, o deslumbrante texto escrito por Beatriz Sayad e Dani Barros possui, dentre seus muitos méritos, o de exibir uma narrativa impregnada de dor e humanidade, mas também capaz de nos fazer rir em determinadas passagens. Ainda assim, o que prevalece é uma dilacerante tentativa de conscientizar o público sobre a questão da loucura, propondo uma mais do que pertinente reflexão sobre o tema.” trecho da crítica de Lieonel Fischer em 22 de novembro de 2011.

“A dupla chave, o jogo realidade e teatro, é a matéria da cena. Através de uma sintonia sutil com a condição de alma de Estamira, Dani Barros envereda por uma metafísica da personagem, uma entrega intensa aos sentimentos e à percepção de mundo da mulher marginal corajosa, que não desistiu de viver. Os momentos de transcendência são interrompidos de quando em quando, para o relato emocionado do ponto de vista pessoal, de Dani Barros, e da história de vida da atriz. O efeito é notável, puro ato de teatro. A percepção imediata é brutal – o ser humano se projeta como um nada, um prosaico fabricante de lixo, fragilidade em carne e osso.

A lição de Estamira se impõe com uma clareza de cegar, adequada para imprimir com tintas fortes este saber, que não deveria nunca ser esquecido – o valor maior para todos deve ser o respeito absoluto à vida, o respeito à delicadeza que o ato de existir precisa ser, para honrar o verbo. É a lição do lixo, aprendizado fundamental do tempo em que vivemos.” trecho da crítica escrita por Tania Brandão em 26 de novembro de 2011.

FICHA TÉCNICA

Direção | Beatriz Sayad
Atuação e idealização | Dani Barros
Inspirado no filme Estamira de Marcos Prado
Dramaturgia | Beatriz Sayad e Dani Barros
Trechos de | Ana Cristina Cesar, Antonin Artaud, Estamira Gomes de Souza, Manoel de Barros e Nuno Ramos
Assistente de direção | Marina Provenzano
Luz | Tomás Ribas
Figurino | Juliana Nicolay
Cenário | Aurora dos Campos
Colaboração | Beatriz Sayad e Dani Barros
Direção musical | Fabiano Krieger e Lucas Marcier
Operador de som| Gabriela Rocha
Operador de luz | Sandro Lima
Assistente de cenografia: Camila Cristina
Costureira | Cleide Moreira
Preparação de ator | Georgette Fadel
Preparação vocal | Luciana Oliveira [fonoaudióloga] Marina Considera [canto]
Preparação corporal | Cristiana Wenzen
Fotografia | Barbara Copque e Felipe Araújo Lima
Voz do fado | Soraya Ravenle
Preparador vocal [Soraya] | Felipe Abreu
Colaborou para esta criação |Ana Achcar
Edição de Vídeo | Antonio Baines
Coordenação geral do projeto| Dani Barros
Realização| Momoenddas Produções Artísticas
Coordenação de produção | Andrea Caruso Saturnino
Produção| Performas Produções

Foto | Felipe Araújo Lima

Sobre o documentário Estamira

O documentário, lançado em 2005, foi dirigido por Marcos Prado e foi premiado em diversos Festivais no Brasil e no mundo, incluindo melhor documentário pelo Júri oficial no Festival do Rio, na Mostra de Cinema de São Paulo e o Grande Prêmio do Festival Internacional de Documentário de Marseille.

Sobre Dani Barros

Atriz formada na Uni-Rio. Trabalhou no projeto Doutores da Alegria por 13 anos. Atuou recentemente na peça Maria do Caritó e Conchambranças de Quaderna ganhando o prêmio APTR de Teatro de Melhor Atriz Coadjuvante com estes trabalhos.  Atuou no programa Minha Nada Mole Vida e no filme O Veneno da Madrugada dirigido por Ruy Guerra. Trabalhou com diretores de teatro como Antônio Abujamra, João Fonseca, Moacir Chaves, Gilberto Gawronski, Inez Viana e Terry O’Reilly [Mabou Mines-NY].

Sobre Beatriz Sayad

Desde 1991 trabalha com a companhia de teatro-clown suíça Teatro Sunil, atual Cia Finzi Pasca, atuando nos espetáculos: 1337 – Déjeuner sur L’herbe, que percorreu cidades do Brasil e da Europa e Donka – une lettre a Tchekhov, que passou por várias cidades da Rússia, América Latina, Canadá, e Europa e está atualmente em turnê mundial. Cursou a escola Jaques Lecoq, na França, em 1997 e 1998. No Brasil integrou o núcleo de pesquisa e criação da Cia Teatro Balagan e atuou nos espetáculos A Besta na Lua e Západ – a tragédia do poder, ambos sob direção de Maria Thais. Trabalhou no projeto Doutores da Alegria por 10 anos atuando como atriz e também como Coordenadora Artística em 2009/10 e em 2005 dirigiu o espetáculo Inventário – aquilo que seria esquecido se a gente não contasse, com o núcleo carioca dos Doutores da Alegria. Formada em letras pela PUC.

Foto | Luis Alberto Gonçalves

CRÍTICAS:

1.MARIA EUGÊNIA DE MENEZES – O Estado de S.Paulo
Delicadeza que vem do lixo
Estamira se inspira no documentário homônimo sobre moradora de lixão

Era uma aposta de risco. Quando decidiu transpor para o palco o argumento do documentário Estamira, a atriz Dani Barros estava consciente dos perigos que corria. “Assisti ao filme dezenas de vezes. Estudava os trechos. Cada gesto, cada palavra. Mas aquilo já estava feito. Não fazia sentido nenhum reproduzi-lo”, conta ela, que mereceu o Prêmio Shell por sua atuação.
De fato, não se pode dizer que seja uma cópia do documentário o que chega hoje ao Sesc Pompeia. Para compor o monólogo Estamira – Beira do Mundo, a intérprete extrapolou os limites do cinema. Primeiro, foi atrás de sua personagem. Visitou e conversou com a verdadeira Estamira, uma catadora de lixo que trabalhava em um aterro sanitário do Rio de Janeiro. A aproximação se estendeu até a morte dela, aos 70 anos, em 2011.
Outro passo nessa construção foi a decisão de articular ao enredo elementos de sua própria biografia. “Encontrei ali algo que eu queria dizer”, diz. “Vi aí a possibilidade de juntar duas coisas: o meu encantamento com Estamira e a minha história familiar.”
Assim como Estamira, a mãe da atriz também sofria de distúrbios psíquicos. Vítima de depressão, passou por várias internações. E padeceu com uma infinidade de tratamentos e medicações que, não raro, mostraram-se inócuos. “A loucura é um assunto com o qual não sabemos lidar”, acredita.
Dirigida por Beatriz Sayad, Dani sublima o passado penoso costurando elementos dos dois universos. Fala por si e pela personagem que encarna. Toma ainda emprestados textos de outros autores, como os poetas Manoel de Barros e Ana Cristina César.
Com um discurso messiânico, Estamira acreditava-se detentora de uma verdade a ser revelada. Invocava o além, o inexplicável. Empunhava uma oratória raivosa contra os equívocos da ciência, desmontava seus supostos axiomas. Atacava a sociedade de controle, a religião e os poderes estabelecidos.
A peça, que já cumpriu temporada no Rio e esteve na grade do último Festival de Curitiba, costuma impressionar o público pela semelhança entre o desempenho da atriz e a Estamira da vida real. Entre sacos plásticos, que evocam o ambiente de um lixão, ela reproduz com veracidade gestos, vozes e inflexões da personagem. “Existe uma parcela do trabalho que é realmente de imitação. Sou boa com isso”, admite ela, que atuou durante muito tempo como palhaça no projeto Doutores da Alegria.
A mimese é, de fato, comovente. Ela coloca no corpo, e não apenas nas palavras, a força e o espanto de Estamira. Mas não seria incorreto dizer que a montagem se sustenta, sobretudo, por outro dado.
Sua qualidade maior é escapar do virtuosismo. A maneira como a encenação mostra-se capaz de abrir espaços para que o espectador vislumbre a intérprete para além de sua personagem.
É no trânsito entre as duas vozes – a sua própria e a de Estamira – que a Dani Barros marca sua diferença em relação às atuações que acompanhamos em outros espetáculos biográficos. Em mínimas transições, ela passa de um lugar ao outro. Cria momentos em que as duas figuras aparecem sobrepostas.
Não há na peça a tentativa de se criar ilusões. Cenografia e iluminação cumprem uma função outra, que não essa. E a plateia conhece, desde o princípio, as regras do jogo que se estabelece em cena.
Esse conhecimento não advém de explicações didáticas. E elas não são necessárias. Só serviriam para macular a mágica zona enevoada em que a atriz ousa se colocar.
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2. BÁRBARA HELIODORA
Adaptação do documentário ‘Estamira’ resulta em espetáculo comovente

No Espaço Rogério Cardoso da Casa de Cultura Laura Alvim está o comovente espetáculo “Estamira — Beira do mundo”, que a diretora Beatriz Sayad e a atriz Dani Barros adaptaram do documentário de Marcos Prado sobre a mulher mentalmente perturbada que olha o mundo com visão crítica e imaginativa. Sem os vastos recursos do cinema fica maior ainda o mérito do monólogo, cuja vantagem é a concentração na figura única (em todos os sentidos) de Estamira, vivida com paixão por Dani Barros. É uma figura humana excepcional que se revela por trás dos limites impostos pela doença e pelas dolorosas circunstâncias que formaram seu universo, não só desde a infância, mas até mesmo em gerações anteriores.

O texto não só é fluente e rico, mas também — talvez até principalmente — se faz mais humano por deixar aflorar, sem timidez ou pudores, a mescla de dor e humor que permite a sobrevivência nessas condições. A frequência de médicos, clínicas e hospitais leva a uma intimidade com o universo das doenças mentais, bem como com um imenso contingente de vítimas de um sistema cruel por massificar os pacientes, maltratar suas individualidades; com tudo isso vemos Estamira aprender e constatar que não há mais inocentes, só espertos ao contrário…

No pequeno espaço a seu dispor, Aurora de Campos (com a colaboração da atriz e da diretora) armou um lixão de plástico que, com mais uns poucos elementos, serve bem o mundo do texto. Juliana Nicolay criou um ótimo figurino, cheio de misteriosos detalhes de costura percebidos através da blusa de tecido aproveitado. A luz de Tomás Ribas segue com justeza os momentos mais pungentes da confissão (ou proclamação) de Estamira, e a música evoca suas lembranças com a colaboração da voz de Soraya Ravenle. A direção de Beatriz Sayad tem a forma e o tempo de quem faz dela uma continuação da criação do texto, dando considerável variação ao monólogo, o que não é fácil.

Nada seria o mesmo, no entanto, sem a excepcional atuação de Dani Barros que, como a diretora, foi também parte da criação do texto. Com um físico esguio privilegiado para o papel e — nada mais difícil para uma atriz — “de cara lavada”, Dani Barros se entrega apaixonadamente à sua Estamira, sem nunca esquecer que está em um palco interpretando um papel, estabelecendo desde o início uma total comunicação com a plateia. De algum modo, o público sente que, por sorte, ele estava ali diante de Estamira na hora em que ela resolve expressar seus sentimentos sobre sua vida e o que esta lhe permitiu observar sobre o mundo em geral; e tal sensação é a medida da qualidade da atuação de Dani Barros. A junção de texto e atriz faz de “Estamira” um espetáculo excepcional.
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3. MACKSEN LUIZ
Estamira

Neste monólogo, baseado na personagem verdadeira do filme de Marcos Prado, Estamira não está solitária no mini palco do Espaço Rogério Cardoso. A atriz Dani Barros, além de intérprete da catadora de lixo de Gramacho, é igualmente personagem, dividindo com alguém em permanente estado de (des)conexão com o real e pungente jorro verbal, parte essencial da sua própria vida. Na ponte que se estabelece entre personagem e atriz, não há lugar para o drama, mas para a emoção límpida que emerge de zonas sombrias e da necessidade de cumprir o fado. Restos e descuidos que são jogados fora, sem se perceber que muitos ainda têm serventia e merecem atenção, são recolhidos na dramaturgia de Beatriz Sayad e Dani Barros com a delicadeza e o cuidado que faltaram às vidas de quem se fala. Não é fácil reproduzir num palco a contundência que tinha o documentário de Marcos Prado, mas esta não é menor, mesmo que se saiba que no teatro não deveriam caber medidas comparativas tão superficiais. Estamira é alguém que traz em seu mundo psicótico a unidade construída por lógica própria, dolorosa, conflituosa, desesperada, mas ainda assim unidade, feita de palavras e de incansável procura de um lugar (Jardim Gramacho foi o ponto de chegada). Caminho percorrido até que o destino se cumprisse. Ao se perguntar, em meio a tantas indagações sem respostas, “pra que saber porque nasce uma pessoa?”, Estamira adota para si o papel de ser “a visão de cada um”, a representação de uma humanidade viva em meio a seus despojos. No acúmulo do que não tem mais uso, a catadora e uma outra mulher, que surge, subterraneamente, como depoimento vivido, ganham significações pelas palavras que voam sem direção, como os sacos plásticos que cobrem o piso do palco. Esta intensa volatilidade de pensamentos, aparentemente inconclusos e perdidos em visões e vozes vindas de escuras cavernas interiores, é estabelecida em roteiro sem quaisquer apelos à emotividade. Fio que tece bordado cênico de nós amarrados por linhas tortas, a dramaturgia apóia a atriz, que tal como intérprete fiandeira, vai desatando com fina agulha afetiva os nós, mais ou menos cegos, dos emaranhados veios da loucura. Dani Barros se impõe, no minúsculo espaço da representação, como presença poderosa de uma mulher em atordoado conflito consigo e com o mundo, e como depositária de história herdada, tão arrebatada quanto a letra do belo fado português cantado por Soraya Ravenle. Dani Barros atinge decantação interpretativa, que está à serviço de delicada, ainda que contundente, exposição da infinita possibilidade do teatro em se debruçar, inesgotavelmente , sobre a aventura humana.

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