ESPANCA! | AMORES SURDOS
Uma família dita comum convive em situações corriqueiras: toma café, briga entre si, alguém adoece… enfim, vive seus problemas cotidianos. O espetáculo fala da capacidade do homem de estar dormindo, mesmo quando acordado; porque, mesmo quando acordados, os personagens não se ouvem, não se enxergam, não se percebem, em rituais do cotidiano que conduzem à alienação e à incomunicabilidade. Tudo corre como o esperado, até que todos são obrigados a reconhecer e conviver com as conseqüências desse amor alimentado por todos, diariamente. Segundo trabalho do grupo, Amores Surdos é a continuação de um caminho. Dessa vez, em parceria com a diretora Rita Clemente. Esse encontro nos consolidou como grupo, nos desafia como criadores e nos posiciona como artistas. Em princípio uma história normal, afinal, todas as histórias do mundo já foram contadas.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Rita Clemente
Dramaturgia: Grace Passô
Atores: Assis Benevenuto (Joaquim), Grace Passô (Mãe), Gustavo Bones (Pequeno), Marcelo Castro (Samuel) e Mariana Maioline (Graziele)
Atores da Primeira Formação: Paulo Azevedo (Pequeno) e Samira Ávila (Graziele)
Consultoria Dramatúrgica: Adélia Nicolete
Assistente de Direção: Mariana Maioline
Cenografia: Bruna Christófaro
Iluminação: Cristiano Araújo e Edimar Pinto
Figurino: Paolo Mandatti
Trilha Sonora: Daniel Mendonça
Direção Vocal: Babaya
Preparação Vocal: Mariana Brant e Camila Jorge
Preparação Corporal: Dudude Herrmann e Izabel Stewart
Coreografia/Professor de Sapateado: Eurico Justino
Técnico e Operador de Luz: Edimar Pinto
Cenotécnico: Joaquim Silva
Costureiras: Mércia Louzeiro e Ireni Barcelos
Produção: Aline Vila Real
Realização: Grupo Espanca!
Classificação: 12 anos
Duração: 60 minutos
Espetáculo realizado com o Prêmio Estímulo às Artes – Auxílio Montagem – da Fundação Clóvis Salgado – Palácio das Artes.
http://vimeo.com/50857089
CRÍTICAS:
1. Antonia Pereira Bezerra
A INCLEMÊNCIA DO INDIZÍVEL
Publicada no Painel Crítico do Festival de Teatro de São José do Rio Preto em 14/07/07
O Espetáculo Amores Surdos do Grupo Espanca, Belo Horizonte/MG, simula uma estrutura inicial previsível. Digo simula, porque esta estrutura aparentemente previsível é profundamente abalada, segundos após o início do espetáculo. Como num crescendo, o jogo dos atores – de uma simplicidade aterradora – não cessa de sacudir o espectador. Na verdade, a forma como o Grupo Espanca nos conta a história de “uma família comum, composta por um pai ausente, uma mãe zelosa, um caçula e mais quatro filhos – Grazieli, Joaquim, Samuel e Jr”, surpreende e interpela o espectador com sua poesia cortante e sua ironia desconcertante.
A Trama de Amores Surdos se desenvolve numa espécie de Hu is Clos (Entre quatro Paredes), onde as personagens empreendem embates e combates aparentemente rotineiros e banais – como parecem ser os embates e combates empreendidos por todas as famílias normais. Curiosamente, o que se desenvolve sob os olhos estranhados do espectador é apenas um artifício. Amores Surdos grita o indizível numa sorte de desespero agudo, sensível.
Seguindo essa progressão, tudo ou quase tudo é velado. O essencial nunca é explicitado. É apenas sugerido pela narração ou pelo extraordinário jogo dos atores. Magníficos atores! Essas sugestões sutis, porém desconfortáveis, têm lugar logo de entrada, quando um ator se dirige ao público, advertindo-o de que a família receberá um telefonema de um irmão que partiu para o estrangeiro e que um desses telefonemas será para dizer que esse irmão suicidou-se. O telefone toca no final da peça – se é que a peça tem fim! – e o irmão caçula, sozinho em cena, não atende, permanece estático, diante do público, na treva.
Numa mesma perspectiva, a verdadeira sujeira – a lama, vaza das estranhas entranhas da família, ultrapassa a parede velada, irrompe o palco e se epalha aos olhos de todos! O público desconhece a origem e causa dessa lama. Ela emerge à superfície como que diretamente eclodida das profundezas do inconsciente coletivo (familiar). É nas discussões explosivas acerca dessa sujeira que o irmão caçula acaba confessando a presença de um hipopótamo dentro de casa. Ele cria um hipopótamo há cinco anos e esse monstro, supostamente, devorou o chefe da família – o Pai. Estranho e belíssimo eco com Os Rinocerontes, de Ionesco.
Amores Surdos pode ser lido como uma balada absurda regida sob a batuta de um realismo-naturalismo limítrofe. E já que tocamos no domínio do realismo-naturalismo, assinalemos as cenas do irmão Samuel, enclausurado do lado de fora, desesperado, sem acesso à casa. Um Tenensee Williams revira do. Um Zoológico de Vidro (A margem da Vida) às avessas. Samuel vive pateticamente à margem dessa família. Ele quer entrar, mas não tem a chave. Ninguém lhe abre a porta. Mesmo do lado de fora, ele tenta acompanhar o ritmo da família: seu sapateado é de uma tristeza poética cortante! De uma beleza patética tocante!
Sob todos os aspectos Amores Surdos coloca mais questões do que respostas, mais problemas do que soluções. Saímos do espetáculo com inúmeros enigmas, dentre os quais:
Que lama é essa que jorra da intimidade dessa família?
Que indizível inclemente é este que traz à luz o que estava oculto e deveria permanecer oculto?
Reconhecer essa sujeira, aceitá-la, como propõe a personagem da Mãe – têm coisas com as quais a gente precisa viver” – nos purificaria? Nos tornaria mais leves? Talvez! O fato é que, após a incontinente crise da Mãe, os filhos decidem por não matar o hipopótamo – o monstro – e iniciam angustiados e resignados a limpeza da lama.
Do ponto de vista técnico, um outro insolúvel e agradável enigma se impõe, desta vez no plano da interpretação dos atores: que jogo é esse que, ao misturar as linguagens – absurdo, realismo, music hall dentre outros ecos, provoca tanta estranheza, tanto fascínio? Bendito hibridismo! Bendito Grupo Espanca!
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2. Júlio Groppa
IMPERMANÊNCIAS LAMACENTAS
Publicada no Painel Crítico do Festival de Teatro de São José do Rio Preto em 14/07/07
Se, tal como a mítica cristã se esforça em nos convencer, seríamos barro e sopro, tidos como matéria de uma permanência transitória que costumam intitular existência, o grupo mineiro Espanca!, com Amores Surdos, prova o inevitável contrário. Somos lama, espasmo e nada além: substância precária e instável daquilo que se chama vida. E entre existência e vida não há sinonímia necessária, nem suficiente. Não pode haver. Vida é expansão desenfreada, vibrátil, nômade, que ultrapassa o existir e seus limites obtusos. Ultrapassagem de si, sem trégua e sem perdão. Barro em estado de liquefação, convertido em fluidos lamacentos, escorrendo ao léu. Impermanência pura, pois.
E é no interior de uma das práticas humanas mais cooptadas pela reiteração e pelo ensimesmamento (o universo familiar e suas estereotipias) que Amores Surdos vai subtrair um sentido de estranheza e insta bilidade do viver ali disposto. Melhor dizendo, vai decretar um significado intensivo para as formas de vida que lá se desenham dramaticamente.
A peça desloca e desfixa, por assim dizer, um território identitário que se alega em crise constante, mas que persiste incólume em seu encapsulamento contra o mundo: as mães persistem morrendo de medo de barata, os pais persistem com medo de ladrão, ambos persistem jogando inseticida pela casa, botando cadeado no portão – na acepção precisa de Arnaldo Antunes.
No universo de Amores Surdos, ao que parece, inseticidas e cadeados não bastam para proteger aqueles cinco do mundo; este os invade com seus sons, seus apelos. É um universo atravessado pelo tempo presente e seus contra-sensos. Não obstante tal conjuntura, e por mais cronicamente inviáveis que se apresentem de largada, as relações entre as personagens exalam amor na chegada. Amores brutos, amores perros.
Daí a pendência do título. São amores, sim, mas não são surdos. Neles nada há de deficiência ou falta. Ao contrário. Se tomados como índice da necessária impermanência da vida, nada lhes falta. Surdos, cegos ou paralíticos, serão sempre amores, e isso lhes basta, ou deveria lhes bastar, já que se trata de uma das coisas “que foram feitas para se viver com elas” – a mais fundamental, talvez.
Ainda, pelo fato mesmo de os amores serem sempre o que são, as personagens exuberam continência uma à outra. Todas se afetam mutuamente, co-habitam o espaço cênico entremeadas e confundidas em e por suas estranhezas. Estão ali para serem testemunhas e co-participes do viver sob o mesmo teto, sob o mesmo nome e, em última instância, sob a mesma lápide, a qual se ensaia com a partida iminente de um deles.
Trata-se de amor tão-somente: substantivo solitário, prática ermitã, análoga ao “pó das frestas” de que fala uma das personagens. Uma esp écie de esplendor banal incrustado no cotidiano e do qual pouco (e poucos) nos damos conta.
Assim, o atual trabalho do grupo Espanca! resulta tão instigante quanto acalentador, já que finda por ofertar opulência e, ao mesmo tempo, delicadeza à platéia durante a breve hora de duração do espetáculo. Breve porque condensada, ágil, intensa.
Sem delongas, o espetáculo é de uma beleza tocante.
Poder-se-ia contra-argumentar que haveria irreverências mal-colocadas; que faltaria uma leve lapidação do texto; que haveria elementos cênicos discutíveis; que uma maior sobriedade interpretativa, algumas vezes, seria bem-vinda; que, outras vezes, a música não soaria inteiramente convincente. Nada disso importa. O que conta é o lastro dramático que sustenta o espetáculo, o qual ganha corpo à moda da lama que invade lentamente o palco e os corpos dos atores.
Talvez isso se deva, ao menos em parte, à presumível mão forte da dramaturgia. Nenhuma outra analogia seria mais apropriada do que aquela em que, em cena, a dramaturga (e também atriz) carrega no colo, literalmente, um dos atores meio metro mais alto do que ela. É a expressão mais fidedigna, ao que parece, da vontade de potência que emana de seu texto.
Igual destaque deve ser atribuído aos outros quatro jovens atores – todos indiscutivelmente competentes. Entretanto, deve-se ressaltar que aquele que interpreta Samuel (Marcelo Castro) tem uma atuação primorosa, privilegiada talvez pelo efeito cênico de sua clausura transparente, a qual emoldura uma extraordinária força vital de seus gestos, de seu modo de estar no mundo e no palco. Personagem e ator em arrebatadora consonância. A vida em sua melhor forma (artística), pois.
Por fim, que se saiba: no meio do caminho tinha um hipopótamo; tinha um hipopótamo no meio do caminho. Dele vertiam lama e espasmos. Nada além? Impermanência, talvez.
Não, definitivamente essa história não havia sido contada antes.
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3. Sérgio Sálvia Coelho
GRUPO ESPANCA! MANTÉM EXCELÊNCIA NA SEGUNDA PEÇA
Publicado na Folha de São Paulo em 07/02/08
Em arte, quando a consagração vem já na primeira empreitada, a segunda pode ser um pesadelo. O Grupo Espanca!, por exemplo.
Tendo estourado inesperadamente com “Por Elise”, no Festival de Curitiba de 2005, e multipremiado pelo Brasil afora, o seu segundo espetáculo gerou uma forte expectativa: seria sorte de principiante?
O problema é que, se o espetáculo “Amores Surdos” fosse muito diferente do primeiro, daria a impressão de falta de projeto, de franco-atiradores em busca de fama.
Esperava-se uma fábula sutil, como a primeira, com frases aparentemente ingênuas que iriam ganhando sentidos cada vez mais profundos, a cada leitura. Mas, no entanto, se fosse muito parecida, diluiria o impacto inicial: o grupo estaria seguindo uma fórmula rentável.
Diário de criação
Acontece que nada é por acaso no Espanca!. Basta checar no blog do grupo o detalhado e bem escrito diário de criação de “Por Elise”.
Desde o primeiro ensaio, de 2005, o grupo busca em conjunto uma linguagem não necessariamente nova, mas que sirva para eles contarem o que precisam contar.
Por isso, mais do que comparar um espetáculo com o outro, é revelador comparar a atual temporada de “Amores Surdos” com a de 2006, no Sesc Pompéia.
O texto nunca deixou de evoluir, as marcas se tornaram mais essenciais e precisas. O que parecia uma referência excessiva ao universo de Ionesco (uma espécie de síntese entre “Rinoceronte” e “Amadeu ou Como se Livrar Dele”) tornou-se uma fábula orgânica, extremamente pessoal, combinando o pueril com o visceral – como na montagem de “Por Elise”.
Desta vez a direção não é mais da autora Grace Passô, mas de Rita Clemente. Com isso, o grupo ganhou uma estética um pouco diferente, com incorporação de um cenário quase realista – e um pouco desajeitado – e marcações mais abstratas.
No entanto, a interpretação dos atores não deixa nunca o espetáculo se tornar hermético ou aleatório.
A força do elenco
Assim, Paulo Azevedo, um ator de grande altura, faz o papel de “Pequeno”, o frágil irmão mais novo, sem evitar o grotesco, mas sem cair no ridículo, em performance inesquecível.
Passô reitera sua função materna, com a força habitual, mas desta vez a função de narrador é feita sobretudo por Gustavo Bones, o irmão que, sonâmbulo, se dirige à platéia, em divertido truque metalingüístico.
Marcelo Castro, com um personagem menos definido (o irmão que não consegue sair de casa) e Mariana Maioline (a irmã alheia), com menos experiência de atriz, completam o elenco de grande cumplicidade em cena.
Comédia? Tragédia? Bufonaria? A dificuldade de se pôr um rótulo em “Amores Surdos” é a garantia de que muito ainda virá do Espanca!.
Um conselho apenas: não se apresse em aplaudir na cena final, no escuro. O final é desnorteante.
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