ATLAS SP
Na mitologia grega, Atlas é aquele que foi condenado por Zeus a carregar o céu aos ombros. Atlas é uma performance que reúne 100 pessoas de diferentes profissões em palco. Nesta obra, Ana Borralho e João Galante pretendem construir um Atlas da organização social humana, uma representação dos seres humanos através da sua função na sociedade em que se inserem. Um dos motores desta peça são as ideias do artista plástico Joseph Beuys, A revolução somos nós e Cada homem um artista. Uma revolução silenciosa. Uma obra motivada pela crença de que a arte deve desempenhar um papel activo na sociedade. Unir a arte e a vida.
Peça para 100 pessoas/performers de diferentes profissões.
A frase mantra que faz parte da canção infantil “Se 1 elefante incomoda muita gente, 2 elefantes incomodam muito mais…” serve de mote para a performance colocando a questão agora não nos elefantes mas nas pessoas. Pessoas de diferentes profissões sobem ao palco uma a uma e dizem qual a sua profissão, inserindo-a na frase que serve de mote à performance. ex: se 1 artista incomoda muita gente, 2 artistas incomodam muito mais… se 2 padeiros incomodam muita gente, 3 padeiros incomodam muito mais… se 3 polícias incomodam muita gente, 4 polícias incomodam muito mais… se 4 fotógrafos incomodam muita gente, 5 fotógrafos incomodam muito mais… se 5 arrumadores de carros incomodam muita gente, 6 arrumadores de carros incomodam muito mais, etc, etc, etc até ao número 100. A cada nova pessoa que diz a sua profissão o grupo que já se encontrar em palco diz a segunda frase em conjunto, ou seja, se em 10º lugar entra uma enfermeira e diz: se 10 enfermeiras incomodam muita gente… o grupo todo em coro diz: 11 enfermeiras incomodam muito mais. Ao repetirem a profissão de cada um dos outros, as pessoas transformam-se simbolicamente no outro. Durante a peça o grupo de pessoas vai aumentando bem como o coro de vozes. Ao longo de grande parte da performance as pessoas caminham do fundo do palco para a boca de cena e vice-versa num vai e vem de ondas , ou seja, a primeira pessoa entra sozinha, diz a frase, volta para trás, vai buscar uma segunda pessoa, dizem a segunda a frase, voltam para trás, trazem uma terceira pessoa, dizem a terceira frase e por aí em diante. O palco vai-se avolumando em pessoas e vozes até ás 100 pessoas.
Ficha Artística e Técnica:
conceito e direção artística Ana Borralho & João Galante
luz Ana Borralho & João Galante
aconselhamento luz Thomas Walgrave
som Coolgate
colaboração dramatúrgica Fernando Ribeiro e Rui Catalão
colaboradores artísticos e coordenadores de grupos Catarina Gonçalves, Cátia Leitão (Alface), André Uerba e Tiago Gandra
produção executiva Ana Borralho, Mónica Samões
performers 100 pessoas de diferentes profissões
Produção casaBranca
Co-produção Maria Matos Teatro Municipal
Residência Artística: Atelier REAL, Alkantara
Apoio: Junta de Freguesia de Santos-o-Velho
casaBranca é uma associação financiada pela Secretaria de Estado da Cultura/DGArtes
ATLAS TEXTOS CRÍTICOS
A Multidão Futura, por Fernando Ribeiro
Desde a irrupção da Revolução Industrial, a gradual distribuição dos cidadãos por cargos ultra-especializados foi conduzindo a uma literal fragmentação da colectividade, enquanto corpo inalienável. A unidade do universo humano é conferida em Atlas, não pela sua governação, mas pela junção de todos e quaisquer sujeitos instituídos como cidadãos, veiculando assim a formação de um sensus comunis baseado na funcionalidade e manutenção do aparelho social. Edificando o fazer como substrato comum, os cidadãos em palco vão-se assumindo gradualmente como multidão até esta adquirir o estatuto de um ser indivisível que, tacitamente, se estende à escala planetária.
Consoante a gestão do mundo vai sendo entregue à circulação infinita de um capital auto-reprodutível que, assim, assume um carácter inumano, a consciência da infimidade dos sujeitos vai-se tornando mais aguda, pelo que apenas a escala da multidão é garante de sustentabilidade do corpo social. Corpo sempre em iminente risco de colapso, mas também o único agente que sustém a noção de futuro.
Do mesmo modo, ao incluir a multidão e, por inerência, o sublime social, a obra de arte corre o risco da sua mesma desagregação, enquanto produto institucional. Ainda assim, é na diluição da autoria e subsequente entrega a todos os cidadãos que a arte assegura a sua monumentalidade, ao torna-se indistinta do campo do imprevisível, quer este seja oriundo da natureza humana ou dos seus destinos.
Fernando L. Ribeiro
(artista plástico, professor universitário)
Cartografias políticas: Atlas de Ana Borralho e João Galante
Por Francesca Rayner
Há hoje em Portugal muitas pessoas que estão verdadeiramente zangadas, mas a quem falta acesso a um lugar público e capacidade de intervenção para poderem exprimir os seus sentimentos. Se o teatro há-de ter algum papel importante neste tempo de “não há alternativa” e “a pobreza há-de tornar-te mais rico”, é enquanto fórum para legitimar essas vozes, que de momento não estão a ser escutadas, e para a presença desses corpos naquele que é o corpo político, mas que os políticos e os meios de comunicação de massa vêm declarando que não existem.
O Teatro Municipal Maria Matos em Lisboa está bem colocado para funcionar justamente como um fórum destes. Desde que assumiu o cargo de Director Artístico, Mark Deputter tem tentado, de forma consistente, abrir o teatro à comunidade, favorecendo o acesso a esse palco por parte de artistas de teatro portugueses como é o caso de Ana Borralho e João Galante, responsáveis por este espectáculo. A programação por temas que encontram eco entre artistas e público são exemplares na sua coerência: sobre a abundância, na temporada anterior, e, agora, sobre a pertença. Tal como aconteceu com estes espectáculos que celebravam o 42.º aniversário deste teatro, ocasiões houve em que a celebração não deixou de integrar a crítica social.
É visível uma diferença logo no foyer, antes mesmo de se iniciar o espectáculo. Para começar, o teatro está cheio. Depois, enquanto a maior parte dos públicos de teatro de hoje são jovens brancos e da classe média, ali havia muitos rostos escuros, corpos mais velhos, trabalhadores de profissão, que olham à volta, ligeiramente nervosos, sem saberem exactamente o que esperar, mas interessados em vir e em apoiar a família e os amigos. Tem havido recentemente algumas queixas, não despiciendas de resto, relativamente ao facto de se instrumentalizar o teatro para abordar problemas sociais e económicos pelos quais o teatro não é, a bem dizer, responsável, mas neste caso tanto artistas como espectadores usaram a ocasião para desafiar mais do que para consolidar o que tem sido o status quo.
Atlas foi, sem qualquer dúvida, o melhor espectáculo que vi este ano, pelo seu claro humanismo e pela ideia de que quando se oferece um lugar para as pessoas fazerem ouvir a sua voz, é isso mesmo que elas fazem. A premissa estabelecida por Ana Borralho e João Galante era claríssima: tragam cem pessoas de profissões diferentes e deixem que se apresentem a si próprias em palco. Contudo, a frase com a qual todas estas pessoas se apresentaram tornou este espectáculo não apenas uma experiência teatral interessante – ao levar à cena vidas vulgares –, mas também uma intervenção social importante. “Se um (/dois/três) pastor (técnico de contas/psicóloga) incomoda muita gente, dois (três/quatro) pastores (técnicos de contas/psicólogas) incomodam muito mais”, sendo a segunda parte dita em coro por todos ao que estavam no palco. Esta frase simples evocava tanto o poder do testemunho individual, como o poder político potencial do colectivo. O momento que melhor ilustrou este potencial foi mais ou menos a meio do espectáculo, quando um homem se dirigiu à zona central do palco dizendo: “Se quarenta desempregados incomodam muita gente…555.000 incomodam muito mais” e, de imediato, a ele se juntou a voz dos que estavam no palco e o aplauso do público.
Durante o resto do espectáculo, os actores individuais introduziam pequenos pormenores que tornavam a sua frase diferente da dos outros. Iam desde uma mãe com quatro filhos, “nenhum deles baptizado, nenhum deles vacinado”, à actriz “intermitente” que tinha acumulado um cem número de outros trabalhos, todos a recibo verde. Deram voz a “uma funcionária pública que trabalha no Museu Nacional e que ainda pensa que a cultura vale a pena”, assim como à “artista plástica alucinada” e ao “técnico de seguros reformado antes do tempo (e com uma grande penalização, por isso mesmo)”. No final do espectáculo uma jovem veio ao proscénio e começou a frase “se cem pessoas incomodam muita gente …”, deixando a segunda parte da frase em suspenso. A mensagem era clara: cem pessoas juntas não são apenas presença, são também poder.
Foi muitíssimo comovente ver como as pessoas se mostravam orgulhosas com as suas mais variadas profissões. O pormenor com que se anunciavam nas suas profissões muito específicas – como, por exemplo, secretária reformada, antiga “teletipista” – revelava não apenas a natureza restritiva das definições que o Estado confere aos empregos, mas também o sentido e o valor que as pessoas atribuíam ao trabalho que realizavam. Este sentimento de orgulho está hoje ferido de morte pelo clima que se criou e em que parece que ter um emprego é em si mesmo uma recompensa.
Foi interessante verificar as muitas variações que os actores – e quem os dirigia – conseguiram introduzir no espectáculo. Afinal, cem pessoas a anunciarem simplesmente o que faziam para ganhar a vida poderia parecer uma base pouco promissora para um espectáculo. Contudo, as apresentações em palco produziam um curioso efeito de acumulação que fazia crescer a expectativa relativamente a uma próxima declaração: um exercício para adivinharmos a profissão que teria a pessoa que vinha a seguir antes de ela a declarar publicamente e depois o exercício de medirmos essa revelação de encontro a preconceitos que nos levavam a conclusões baseadas fundamentalmente no aspecto exterior da pessoa. Uma senhora fina que se apresentou quase no fim de espectáculo, por exemplo, chocou o público quando começou a dizer “se setenta e duas prostitutas incomodam muita gente…” As profissões das pessoas – ou a falta delas – costumavam ser um cartão-de-visita social num tempo em que os empregos não eram assim tão poucos, mas tornaram-se hoje uma linha de fractura em que se jogam importantes lutas sociais e políticas. Como tal, elas são também um assunto candente para um espectáculo de teatro, em especial num contexto em que os trabalhadores do espectáculo estão eles próprios sujeitos a uma degradação semelhante no seu estatuto profissional.
Por entre as apresentações individuais, havia alguns momentos de silêncio algo sinistro quebrado apenas pelo som de frases anónimas por parte da produção e perlo ruído de máquinas de dinheiro, bem como uma orgia ensurdecedora de barulho em que durante alguns instantes todos falavam mais alto do que outros. Não era claro o que diziam (embora tivesse havido um curto monólogo fabuloso no final), mas enquanto espaço livre em que as pessoas podiam gritar ou sussurrar o que lhes ia no pensamento, aqueles poucos minutos pareciam ser de genuína libertação tanto para os actores como para o público.
No final do espectáculo, os actores desciam do palco para a sala, desconstruindo a quarta parede de modo a sugerirem novos formatos de comunidade e da sua relação com o teatro. É tremendamente importante que seja ainda possível irmos ao teatro e sermos invadidos por sentimentos como a compaixão e a raiva ao mesmo tempo. Alguns espectadores pareciam pensar que não era aquilo o que o teatro devia fazer. Contudo, pareceu-me que este espectáculo era exactamente o que o teatro devia estar a fazer agora, ou seja, a contrapor o poder das pessoas comuns e do teatro às forças que querem que acreditemos que nada disso interessa. Construir, afinal, um atlas histórico e geográfico da sociedade humana num momento particular como uma forma de lutar por um futuro sustentado.